A GRANDE JORNADA - CONTO COLETIVO 2023

FIGURAS DE LINGUAGEM

DISPOSITIVOS LITERÁRIOS

FERRAMENTAS LITERÁRIAS

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Sem nada a perder - Ana Catarina Sant’Anna Maués


 Imagem relacionada
Sem nada a perder
Ana Catarina Sant’Anna Maués

                Em meio a escombros estava eu. A noite caia como de costume e o frio se aproximava. Sede, fome, vestida com trapos. Miséria por todos os cantos. Mas o que mais doía era a privação de afeto. O olhar oco de toda aquela gente me angustiava por demais. Eu não tinha nada, eles não tinham nada, nós não tínhamos esperança.
             Tarde de outono. O sol frio entrava pela janela formando doces sombras na parede alva. Eu tomava a lição de minha aluna mais dedicada. O som das notas em perfeita harmonia conduzia-nos ao nirvana. Sobre a mesa um bolo esperava. De repente ouvimos sirenes, fortes clarões, e estouros ao longe. Minha mãe chegou esbaforida na sala do piano.
― Vamos sair, rápido, rápido, ao abrigo, vamos, vamos!
            Bum!
            Despertei na escuridão com a cabeça a enlouquecer de tanta dor.  Não sentia as pernas, estavam presas, acreditava que por blocos de concreto. Sentia-me molhada, perecia lama pela densidade. Ao longe escutava latido de cães. Guardava meu último esforço para gritar, o mais alto que pudesse, quando chegassem perto. Graças a Deus consegui.
             Com muito trabalho conseguiram tirar-me daquele pesadelo. Mas era só o começo, outros me aguardavam. Do lado de fora, não havia mais casa, bairro ou cidade. Tudo havia desabado com a potência das bombas. Trataram minhas feridas ali mesmo e me largaram num canto qualquer entre escombros, pois não haviam hospitais com leitos e lençóis brancos. A vista tudo era um caos de cor cinza com cheiro de morte. Ninguém chorava porque o desalento era maior que qualquer lágrima.
             Até que um dia, no de minha maior fraqueza, quando já agonizava, abri os olhos e vi, parecia alucinação, um carro aproximava-se, trazendo uma bandeira, única cor naquele cenário devastado.  Homens altos, fortes desceram do automóvel, aproximaram-se e certificando de que ainda respirava, conversaram. Foi quando escutei um dizer ao outro sobre mim: ― Deve servir! E puseram-me no banco de traz saindo em alta disparada.
             Jogada naquele automóvel como uma peça, um objeto qualquer nada fazia sentido. O que poderiam querer comigo?  Ainda presto a alguma coisa?   Àquela altura, pensava, o que mais de ruim poderia me acontecer?  Enquanto era levada às pressas naquele automóvel, sem saber para onde, aproveitava o macio daquele assento e o cheiro bom que o vento trazia. Cheiro de vida.
             Muitos anos se passaram. Retomei minha antiga profissão. Não perdi a audição apurada para as notas musicais.  Quando lembro daquele momento questiono se foi uma troca justa, afinal minhas córneas foram retiradas. No jogo do tudo ou nada, elas foram o meu tudo para a vida. 

O VIOLINISTA NO TELHADO - Henrique Schnaider


Resultado de imagem para violino no telhado

O VIOLINISTA NO TELHADO
Henrique Schnaider


Conde Wlad possuía vários castelos na região da Valáquia, atual República da Moldávia, era poderoso, muito cruel, tinha a fama de empalar seus inimigos.

Seus aldeões sentiam cheiro do sangue pestilento da morte, na sua passagem, se algo o desagradasse, os castigos eram terríveis, o povo sentia medo, respeito, admiração pelo Conde Wlad, dicotomia entre sentir-se protegido pelo seu Grão Senhor, mas o temiam feito, uma matilha frente ao macho alfa.

Suas façanhas corriam com a força do vento dentro de seus territórios. Certa feita o Conde passava na região da antiga Bessarábia numa Aldeia Judaica de nome Britishone, chamou-lhe atenção um violinista no telhado, tocando uma melodia judaica tão leve que parecia encostar nos ouvidos daquele guerreiro.

Wlad ordenou aos seus guerreiros que trouxessem aquele mago do violino, pessoa a quem Deus dera um dom maravilhoso, ao tocar encantava até os corações de pedra.

Seu nome era Moises, contou que aprendera a tocar com seu pai que por sua vez, aprendeu com seu avô e assim, este dom veio através de muitas gerações.
O Conde ordenou que ele tocasse algo, para que apreciasse. Moises então tocou uma antiga melodia judaica, que justamente falava das crueldades dos senhores feudais, mas como Moises apenas tocava, Wlad não tinha conhecimento do significado da história desta música.

Depois deste momento sublime, Wlad seguiu caminho, pois iria invadir a região da fronteira onde a algum tempo aconteciam escaramuças.

Embalado pela suavidade da música que ouvira, o Conde Wlad seguiu com sede de vingança, para atacar a cidade de Corneja onde uma grande batalha o esperava.

O encontro dos exércitos, foi terrível, Wlad e seus soldados eram implacáveis, não haveria presos, a morte era certa, a paz só viria para quem morresse.

Foram dois meses de atrocidades até que o Conde impôs sua paz pela morte. A cidade de Corneja passou a fazer parte dos territórios do Guerreiro.

Os homens de Corneja sentiram a mão de ferro e o amargo sabor da derrota que deixa a terra arrasada onde não cresce mais nem sequer uma pequena plantinha. Tarefa terminada o Conde voltou para seu castelo na Transilvânia, mas sem antes deixar de passar na Aldeia de Britishone.

Os homens do Conde Wlad trouxeram novamente Moises o violonista do telhado que compusera uma melodia, em homenagem a Wlad,  que ele adorou, a tal ponto de caírem lagrimas de seus olhos de diamantes.

Moises nem poderia imaginar o sucesso da letra da música, que foi imortalizada. O sucesso atravessou os séculos e chegou até nosso tempo. O violinista contou a história do Conde Drácula que se transformava em vampiro, era imortal, voava como morcego, chupava o sangue das pessoas transformando-as em novos vampiros. Drácula só morreria junto com sua maldição com uma estaca em cruz cravada no seu peito.     


FIM DE LINHA - Hirtis Lazarin


Resultado de imagem para homem furioso

FIM DE LINHA
Hirtis Lazarin


Nasci numa família pobre e desestruturada.  Um pai alcoólatra e uma mãe que aceitou a cruz como se não houvesse nada mais além. 

Cansei de ouvir: "É o destino, filha".

Os domingos em casa eram torturantes.  O homem não saía, bebia sem parar, fome não tinha.

À chegada da noite, ele desmaiava no sofá da sala para acordar só na segunda-feira.  Ou então recitava incansavelmente a mesma ladainha recheada de palavrões acompanhada de pratos despedaçados contra paredes, panelas e comida quente esparramadas pelo chão.

Lembro-me que, ainda pequenina, mamãe e eu atemorizadas e trancadas no quarto, rezávamos ajoelhadas, implorando proteção à Nossa Senhora.  Quantas velas acendemos!

À medida que fui crescendo e entendendo um pouco mais da vida, fiquei revoltada.  Não suportava as loucuras do meu pai, nem a passividade de minha mãe.  Sentia raiva, muita raiva...

Nunca tive a oportunidade de trazer amigos, ouvir música, ou escolher o programa de TV.

Sentia vergonha da minha família.

Aos dezoito anos, abandonei os estudos e fui morar com meu primeiro namoradinho.  Que experiência eu poderia ter?  Mas qualquer coisa seria melhor que viver insegura e revoltada naquela casa horrorosa.

Samuel era um rapaz bom e trabalhador, bem mais velho que eu.

Fez de tudo para me ajudar.  Pagou psicóloga, psiquiatra e acreditem, até me deu um cavalo de presente pois sabia que eu amava cavalos.  E ouviu dizer que equitação é um bom remédio para diversos distúrbios.

Segui à risca todo tratamento, mas com o passar do tempo fui desanimando.  Eu continuava deprimida e revoltada.

Carregava tantos traumas que me fizeram uma mulher fechada, de palavras amargas e frias.

Descobri que as manchas roxas que marcavam temporariamente a pele branquinha de mamãe, arroxearam para sempre minha alma sofrida.

Tentei engravidar.  Quem sabe o riso e o choro saudável de crianças pudessem me ajudar.  O trabalho dobrado preencheria esse vazio existencial.

Não consegui.

Em casa não havia mais música. O silêncio ficou doloroso.

As janelas, mantinha-as fechadas.  A ausência de sol deixava o ambiente interior impregnado de um cheiro embolorado, úmido e cinzento.

Até os muros que nos rodeavam denunciavam melancolia.  Cuspiam cal e cimento e os buracos surgiam desprezados.

Samuel não suportou viver junto de tanta amargura.  Ele estava certo.  Era jovem e cheio de vida.  Tinha direito à felicidade.  Deixei-o partir.

Eu estava ciente de que acabava de fazer um buraco profundo para enterrar minha última possibilidade, meu último desejo.

Desisti, então, de vez da magia de viver.  Desisti de tirar o coelho de dentro da cartola.

Era a primeira noite que dormiria sozinha.  Senti falta do corpo dele roçando o meu.  Senti falta do seu cheiro e até do seu ronco...

Chorei tanto que eu e meu travesseiro dormimos molhados.

Acordei sobressaltada.  O relógio marcava quatro horas da manhã.

A energia estava cortada.  Por uma fresta da janela, espiei e lá fora um vendaval uivante derrubava tralhas e arrastava outras.  Os galhos mais frágeis se contorciam em desespero, teimando em não abandonar o tronco das árvores.
Relâmpagos intermitentes clareavam e escureciam os aposentos.  Os raios pareciam explodir dentro de casa.

Desci as escadas tremendo de pavor. Nunca vi coisa parecida em toda minha vida.

Encontrei as janelas e portas da cozinha escancaradas.  O meu cavalo solto no quintal só se aquietou quando apareci na porta.  A louça do nosso último jantar eram cacos espalhados pelo chão.  As cortinas de tecido fino feito velas desgarradas em alto mar, entrelaçaram-se em nós.

Uma chuva torrencial desabou.

Eu já não tinha mais nada a perder.  Então soltei os cabelos longos, despi-me e nua montei no cavalo branco.

E galopando freneticamente me perdi em meio à tempestade.


Em algum lugar do oceano - Ana Catarina Sant’Anna Maués



Resultado de imagem para iate em alto mar

Em algum lugar do oceano
Ana Catarina Sant’Anna Maués

    Permitiram-se uma segunda chance decidindo viajar. Escolheram refazer o passeio de anos atrás ocasião em se conheceram, desta vez no iate, o xodó de ambos. O casal chegou à marina e o barco majestoso de cento e quarenta pés já os esperava. Celso conhecia bem o mar por isso dispensou a tripulação, e em águas azul turquesa lançaram-se.
      Calados estavam já havia algum tempo, ele no timão e ela aproveitando um bom whisky no deck, no horizonte só água. Ele meditava: Que amor é esse que me toma dessa forma, me domina me entontece é tanto amor que maltrata éramos felizes os dias passavam lentos aqui neste barco nos amávamos porque lembrei disto ela está aqui não está podemos fazer de novo teremos a mesma rotina sim é possível basta que eu esqueça tenho que esquecer mas como fazer foi muito cruel me traiu aqui neste lugar absurdo como pode quantos teriam sido só aquele não não ela andava diferente ingrata víbora sempre me dediquei idiota como fui idiota em que estará pensando a vagabunda.
De repente ele acionou o piloto automático e foi até ela. O rosto não estava mais sereno, carregava olhar frio e penetrante tamanha vontade de invadir os pensamentos dela, o ódio fervia dentro e isso era flagrante enquanto se aproximava.
     Ela notou e um frenesi mental se sucedeu. Não devia ter vindo não devia ter confiado está com o olhar daquela noite se me provocar não vou calar desta vez vou reagir se mostrar medo será pior meu Deus será tudo um plano será que quer acabar comigo que faço se me agredir vou revidar vou revidar.
Estela inicia busca rápida em volta procurando com o que se defender caso ele queira agredi-la fisicamente.
― Pensando nele? Fala aí, pode falar sua vagabunda, vamos lavar nossa roupa suja! Como teve coragem! Usar nosso iate, aventureira ordinária! Isso aqui foi um sonho, o nosso sonho. Desgraçada, cretina, eu te dei de tudo. Você não presta.
   Estela, tensa com o corpo a tremer espera por violência. O desespero aumenta porque está só, nas brigas anteriores, familiares ou amigos estavam por perto.
   Inicia-se uma sessão de insultos de parte a parte, o tom de voz aumenta, o ânimo explode, ela atira o copo e acerta em cheio a fronte. A pele abre, o sangue escorre. Ele fica possuído pelo mal, passa a agredi-la com socos e chutes. A luta se instala. Ela também ataca, chegam até o parapeito da embarcação que balança bastante devido a velocidade que apresenta e o agito das águas. Celso aperta com força o pescoço dela e a empurra observando-a sumir na espuma.
   O calor o desperta. A pele arde com as queimaduras do sol, o rosto inflamado estourou em bolhas, pescoço e braços rasgados indicando marcas de unhas, assim ele desperta do que pareceu ser um transe.  Não tem noção de tempo, não sabe dizer se ficou desacordado horas ou dias. Procura por Estela, percebe que está só. O iate sobre um banco de areia com a proa toda destruída. Dentro tudo revirado, louças e móveis quebrados, instrumentos e painel de controle, sem bússola, rádio e o motor em pane. Percebe que será seu fim. Imagens de um passado recente chegam, a consciência aflora. Num choro sem trégua amarga o acontecido e como penitência se entrega, sem reagir, aceita a morte iminente.

O INFERNO - Henrique Schnaider



Resultado de imagem para guerra na siria

O INFERNO 
Henrique Schnaider

Meu nome é Samir, moro na cidade de Alepo na Síria, minha infância foi alegre, feliz com meus pais, muito zelosos. Éramos oito irmãos, quando sentávamos à mesa, era uma algazarra, nós e meus avós paternos, o aroma do pão pita que dominava o ar, exalando o perfume doce do trigo com o aroma peculiar da zátara.

Todas as tardes exatamente as seis horas do alto do minarete, o Muezim anunciava, que era hora de se ajoelhar e rezar em direção a Meca. Fazíamos nossas orações com a maior convicção, com o coração cheio de fé.  Como acreditávamos no profeta Maomé e que Alá é grande, nos protegeria de tudo e de todos os inimigos infiéis de poderes imensuráveis.

As aulas de Alcorão na mesquita de Al Aksa, ministrada pelo Aiatolá Mohamed, eram uma mistura de ar impregnado do doce e rubro carmim, todos nós sentados no chão, atentos à aula com uma mistura de respeito e medo, deliciados, ouvidos atentos ao Aiatolá que quando terminava nossos estudos, oferecia o Halawi, iguaria dos Deuses.

Até ali tinha uma vida feliz, mas quando começou a guerra na Síria, não entendíamos nada do que ocorria, apesar de ser um adolescente, não conseguia assimilar a crueza da guerra, que nos machuca como ferro em brasa.

A violência crescia cada vez mais. Bombas não paravam de cair, uma chuva de meteoros. Ora estávamos dominados pelo Estado Islâmico, ora os rebeldes adversários do Presidente Hafez Assad, também o exército sírio invadiam nossa cidade. Não importava quem nos dominasse, éramos nós que sentíamos a dor aguda dos bombardeios.

Nesse inferno que se tornou nossa vida, um dia, durante um bombardeio atroz, nossa casa foi atingida em cheio, pedaços de concreto voaram estilhaçados por todos os lados. Nossa vida passou a ser amarga. Morreram cinco dos meus irmãos, meus avós, meus pais.

A dor lancinante de tamanha perda, foi demais para mim. Desnorteado, sem saber o que fazer, a única coisa que sei, é que reuni meus irmãos e tratei de sair daquele inferno.

Foram dias de muito sofrimento, fomos em direção ao mar, na esperança de encontrar lá algum barco, que nos tirasse da Síria para qualquer outro lugar.

Já não tinha mais o que fazer, só restava orar à Alá. Chegamos na praia depois uma odisseia indescritível de dias intermináveis de sofrimento. Havia um barco no local com pessoas tentando entrar, nos juntamos ao grupo. Depois de uma luta terrível conseguimos adentrar no velho barco caindo aos pedaços.

Em algumas horas estávamos em alto mar, balançando ao sabor das ondas. Na embarcação que caberia no máximo trinta pessoas, havia cinquenta, sem água sem comida, pessoas passando mal, outras dependuradas vomitando o pouco que haviam comido. A cena no local era de puro desespero.

Rezava para Alá, agora já não mais com fé, mas sim com pura revolta, querendo saber o que fiz para merecer tamanha desdita. Não acreditava em mais nada como poderia haver um Deus que permitisse que aquilo acontecesse.
Depois de dias sem comer e beber, já haviam falecido umas vinte pessoas, estávamos em estado lamentável, nos sentíamos como ratos de esgoto.

Finalmente chegamos nas piores condições possíveis, próximo da Ilha de Lampedusa na costa italiana.

Vieram as autoridades de saúde da Itália, para nossa alegria ilusória que durou pouco, fomos tratados feito vermes, depois de algum tempo nos recolheram em um acampamento de refugiados onde nosso martírio continuou, aqui estamos aguardando o que vão fazer conosco, só Alá é quem sabe.

  







O caracol e a borboleta. - Hirtis Lazarin

  O caracol e a borboleta. Hirtis Lazarin   O jardim estava festivo e cheirava a flor. Afinal de contas, já era primavera. O carac...