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quinta-feira, 10 de maio de 2018

Sem nada a perder - Ana Catarina Sant’Anna Maués


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Sem nada a perder
Ana Catarina Sant’Anna Maués

                Em meio a escombros estava eu. A noite caia como de costume e o frio se aproximava. Sede, fome, vestida com trapos. Miséria por todos os cantos. Mas o que mais doía era a privação de afeto. O olhar oco de toda aquela gente me angustiava por demais. Eu não tinha nada, eles não tinham nada, nós não tínhamos esperança.
             Tarde de outono. O sol frio entrava pela janela formando doces sombras na parede alva. Eu tomava a lição de minha aluna mais dedicada. O som das notas em perfeita harmonia conduzia-nos ao nirvana. Sobre a mesa um bolo esperava. De repente ouvimos sirenes, fortes clarões, e estouros ao longe. Minha mãe chegou esbaforida na sala do piano.
― Vamos sair, rápido, rápido, ao abrigo, vamos, vamos!
            Bum!
            Despertei na escuridão com a cabeça a enlouquecer de tanta dor.  Não sentia as pernas, estavam presas, acreditava que por blocos de concreto. Sentia-me molhada, perecia lama pela densidade. Ao longe escutava latido de cães. Guardava meu último esforço para gritar, o mais alto que pudesse, quando chegassem perto. Graças a Deus consegui.
             Com muito trabalho conseguiram tirar-me daquele pesadelo. Mas era só o começo, outros me aguardavam. Do lado de fora, não havia mais casa, bairro ou cidade. Tudo havia desabado com a potência das bombas. Trataram minhas feridas ali mesmo e me largaram num canto qualquer entre escombros, pois não haviam hospitais com leitos e lençóis brancos. A vista tudo era um caos de cor cinza com cheiro de morte. Ninguém chorava porque o desalento era maior que qualquer lágrima.
             Até que um dia, no de minha maior fraqueza, quando já agonizava, abri os olhos e vi, parecia alucinação, um carro aproximava-se, trazendo uma bandeira, única cor naquele cenário devastado.  Homens altos, fortes desceram do automóvel, aproximaram-se e certificando de que ainda respirava, conversaram. Foi quando escutei um dizer ao outro sobre mim: ― Deve servir! E puseram-me no banco de traz saindo em alta disparada.
             Jogada naquele automóvel como uma peça, um objeto qualquer nada fazia sentido. O que poderiam querer comigo?  Ainda presto a alguma coisa?   Àquela altura, pensava, o que mais de ruim poderia me acontecer?  Enquanto era levada às pressas naquele automóvel, sem saber para onde, aproveitava o macio daquele assento e o cheiro bom que o vento trazia. Cheiro de vida.
             Muitos anos se passaram. Retomei minha antiga profissão. Não perdi a audição apurada para as notas musicais.  Quando lembro daquele momento questiono se foi uma troca justa, afinal minhas córneas foram retiradas. No jogo do tudo ou nada, elas foram o meu tudo para a vida. 

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