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segunda-feira, 7 de março de 2016

De médico e louco, todo mundo um tem um pouco - Rejane Martins


De médico e louco, todo mundo um tem um pouco
Rejane Martins

Alguns anos atrás, tive o prazer de conhecer um rapaz que acabara de ingressar no curso de medicina, em uma das mais conceituadas universidades brasileiras. Todos o consideravam a grande promessa.

Nascido numa família humilde sempre estudou em escolas públicas, mas isso nunca abalou a fé em sua vocação. Queria salvar vidas, atenuar dores, abastecer de esperança as pessoas que o procuraria.

Logo nos primeiros anos da faculdade, procurou meios para atuar como monitor nas mais diversas disciplinas, estágio em clínicas e laboratórios, conseguiu bolsa de incentivo à pesquisa, fazia de tudo para conhecer e se sentir cada vez mais preparado.
Destacou-se tanto  que na formatura foi homenageado como o aluno modelo da turma. Lembro-me de nesse dia, com a voz embasbacada só consegui balbuciar: “Esse garoto vai longe!”. 

Como prêmio pelo seu esforço, foi beneficiado com uma bolsa de trabalho por três anos no Boston Children’s Hospital, o mais conceituado hospital infantil na atualidade. Seguindo a mesma rotina, aplicada nos tempos de estudante universitário, o Dr. Humberto Silva também se destacou em terras estadunidenses. Publicou vários artigos com temas exclusivos e abriu portas para importantes pesquisas.

Palestras ao redor do mundo começaram a lotar sua agenda. Criou e deu seu nome a uma Fundação de ajuda e proteção a crianças africanas. Uma ONG que na luta contra a desnutrição, o abuso e negligência nos cuidados, atende crianças carentes.

Dia após dia Dr. Humberto aumentava a certeza de  que o lugar que ele queria estar era no seu país, realizando os sonhos da juventude. O distanciamento das metas estabelecidas no passado,  apressou a hora de voltar, e assim o fez.

Chegou no Brasil, dirigiu-se à Curitiba, e se ofereceu para trabalhar no Hospital Pediátrico Pequeno Príncipe. A elevada qualificação do médico terrificou a administração do hospital que presumiu um custo muito elevado ter esse profissional em seu quadro clínico, impossível de se arcar.

Requisitou uma reunião privada com o conselho do hospital, expôs suas razões em procurá-los e apresentou uma proposta irrecusável. Concordaria em receber uma remuneração ligeiramente superior a um profissional iniciante, mas gostaria de ser chefe de uma ala de pesquisas em doenças infantis raras, e uma equipe conceituada para auxiliá-lo. Solicitou também a implantação de um programa social que atendesse gratuitamente, em determinados dias estipulados pela administração, pacientes realmente carentes triados pelo hospital.

Após uma sucinta, porém minuciosa análise, a proposta foi recebida sem ressalvas pelo conselho, a rápida deliberação foi responsável pela mais rápida ainda assunção do Dr. Humberto e sua equipe.

Não demorou muito para Dr. Humberto sofrer o primeiro revés de seu novo emprego. Nos corredores do hospital reencontrou um fantasma do passado, possuidor de RG, CPF e nome, Dr. José Roberto Alcântara Gastão de Mello. Colegas de turma é só um modo de se referir, um era o oposto ao outro.

O último interesse do então estudante José Roberto era a medicina, estava sempre envolvido em falcatruas, em negócios escusos que abrangiam a conquista de notas não merecidas, corrupção no mais elevado grau, manipulando pessoas, recursos, cargos e influências.

Dr. José Roberto pertencia a alta cúpula administrativa que mantinha vínculos com o governo em diversas esferas. Estava  despendendo muito de sua energia para assumir todo complexo como único e absoluto gestor, além de cargo político ligado à saúde.

A ideia de trabalharem na mesma organização não agradava nenhum dos dois. Ambos se sentiam incomodados com a presença do outro. Mas tinham sorte pois rara eram as vezes que se cruzavam ou trocavam algumas palavras.

Durante um atendimento filantrópico a um garoto de 3 anos, aparentemente tratava-se de uma infecção do trato respiratório, o Dr. Humberto orientou que fosse ministrado amoxicilina no garoto. Logo que o remédio entrou no pequeno corpo, ocorreu uma reação anafilática levando-o a óbito.

Em investigação policial Dr. Humberto relatou todos os cuidados tomados nos procedimentos médicos. O padrasto, que era o acompanhante do menino, forneceu as informações solicitadas. Mas não mencionou a alergia. Talvez não tivesse conhecimento da deficiência do organismo dele. O médico não tinha porque suspeitar da fatalidade da droga.

Dr. José Roberto, representante oficial da instituição, também foi convocado a depor, sua declaração chocou todo o corpo policial. Revelou que garoto já era paciente do hospital há algum tempo, e que em seu histórico médico havia o registro do grave quadro que o acometeu há dois anos atrás quando ministraram a mesma droga. Se o Dr. Humberto tivesse puxado a ficha online do paciente que ele teria acesso a todas as informações.

O acusado não conseguiu provar que não havia arquivo para aquele garoto, que ele tentara visualizar os arquivos, mas o computador não carregou. O hospital e a polícia não conseguiram provar o dolo no erro médico. O processo continuaria em análise e qualquer fato novo e relevante os envolvidos seriam novamente convocados.
A ambição desenfreada do Dr. José Roberto, levou-o a solicitar a abertura de um processo ético junto ao Conselho Regional de Medicina. Já havia passado da hora para que aquele médico tão bonzinho, tivesse o que realmente merecesse.

Marcada a acareação, os dois profissionais apareceram no prédio do conselho para prestar declaração. O primeiro a chegar foi Dr. Humberto, sentado na sala de espera aguardava a vinda de seu delator.
Foi atingido por um soco no estômago, quando o as portas do elevador se abriram. Ao lado do Dr. José Roberto, elegantemente trajada estava Sylvia. Os cabelos apresentam outra tonalidade que combinava mais com o seu tom de pele, o corte clássico apresentava certa modernidade no penteado impecável. A roupa confeccionada exclusivamente para ela, valorizava as curvas do corpo esguio e alto. E ao fixar o olhar nos pés, se permitiu um instante de descontração: “Ah! Ela aprendeu a se equilibrar no salto alto”.

Sentiu-se abalado, como Sylvia tinha se aproximado do Recruta Zero Berto? Ela não suportava nem olhar para ele nos tempos da faculdade. O que aconteceu com eles? E o que aconteceu comigo? Como me afastei e anulei aquela imagem estonteante dentro de mim?

Perdido num turbilhão de pensamentos, não percebeu a aproximação do casal. Porém aquele aroma delicado e sutil do perfume o trouxe de volta à realidade. Mesmo visivelmente afetado pela situação, conseguiu proferir algumas palavras gentis e sinceras.

A audiência iniciou-se e o Dr. Humberto só tinha olhos e pensamentos para Sylvia. Seu advogado precisou lhe admoestar sob a gravidade da situação. O processo estava sendo movido por uma pessoa muito influente que estava acostumada a conseguir tudo que queria. Ele precisa se concentrar cento e dez por cento para conseguir provar sua inocência.

E assim o fez, mais uma vez blindou a imagem estonteante de Sylvia e a guardou bem no fundo de suas memórias. Não se permitia cruzar os olhares, nem procurar pelos sons emitidos por ela vez por outra deliberadamente.

Todo o processo caminhava para uma condenação magistral do Dr. Humberto. Tudo que ele tinha era, “eu entrei no sistema, mas a tela não carregou nenhuma ficha médica do paciente”, “o padrasto do garoto não relatou a alergia durante a consulta”.
No final da primeira sessão ninguém estava disposto a apostar na inocência do réu. Temia-se  pelo seu futuro, vislumbrava como negro e sombrio. Foi para casa, e não que fosse um hábito seu, mas naquele dia ele precisava, abriu uma garrafa de vinho esparramou-se no sofá, fechou os olhos e segurou para não chorar.

O som inconvenientemente alegre de seu celular o arrancou do transe, não acreditava na voz que ouvia de outro lado. Sylvia queria vê-lo, era urgente, seu marido participaria de um evento político, inauguração de alguma coisa que ela não registrou, e iria demorar. Eles teriam bastante tempo para conversar.

Ponderou se, a essa altura dos acontecimentos, seria uma boa ideia, mas Sylvia insistiu e aguçou a curiosidade, você gostará do encontro.

Marcaram em um bar afastado onde não fossem reconhecidos. Agora ela estava mais parecida com a Sylvia que ele se lembrava, cabelos presos, calça jeans, tênis, camisa casual sob um casaquinho meia estação, só para quebrar a atuação do sereno.  Por um instante almejou retornar a época onde aquela visão era todo o seu universo.
Humberto saiu renovado desse encontro, não conseguia dormir, contava os segundos para que o dia amanhecesse. Bem cedo efetuou a ligação mais importante e promissora da sua vida.

De volta ao conselho regional, em uma reunião solicitada pelo advogado do acusado, apresentou o relatório da rede de computador revelando o uso da senha pessoal do Dr. José Roberto, na omissão da ficha médica on line do garoto durante a consulta.
Apesar da veemente contestação do Dr. José Roberto, os membros do conselho de classe não consideraram a argumentação de um médico respeitável ser vítima de uma rede de intrigas.
O Ministério Público aceitou a denúncia do Conselho Federal de Medicina contra o médico da cidade. O processo na justiça correu de forma assustadoramente rápida culminando com a condenação máxima, todo o júri se surpreendeu com o grau de frieza apresentado pelo réu, até parecia que não tinha cometido crime algum.
O Dr. Humberto aliviado em provar sua inocência, se sentia impelido a agradecer a pessoa responsável por sua liberdade. Mais tarde, chegou ao lugar combinado  encontrou Sylvia usando um lingerie bem sensual, iluminada por velas e um espumante no gelo ao seu lado.

Recuperaram o tempo perdido, entregando-se as luxurias e aos prazeres a noite toda. Em meio à madrugada, Humberto indagou a Sylvia se ela acreditava que o marido tinha agido daquela maneira por desconfiar do caso existente entre eles.

Sylvia não encontrava respostas para essa parte de sua vida. Porque se uniu a um homem que tanto desprezara? Porque minimizou as ações ruins praticadas por ele? Ela preferia apagar o triste período que a consumia com remorso e culpa.

Todos se chocaram com a notícia da recente morte do Dr. José Roberto no presidio. Por mais que quisessem saber, a polícia não comentava a linha de investigação, ainda era um mistério foi suicídio, assassinato ou morte natural.

Em menos de uma semana Dr. Humberto foi acordado pela força policial à sua porta, recebendo voz de prisão pelo assassinato do Dr. José Roberto.

Na delegacia Dr. Humberto alegava inocência, mas não esclarecia seu paradeiro na hora presumível do crime. E a imagem captada pelas câmeras de vigilância, que apesar de não terem uma boa resolução, não geravam dúvidas sobre sua visita ao morto. E aquele documento falso, usado para no registro da visita e, achado escondido em seu apartamento.  

Usou seu direito a uma ligação, e rogou para que Sylvia comparecesse a delegacia urgente. Relatou o acontecido e pediu para que ela o liberasse do segredo e atestasse o álibi, posto que o ninho de amor deles situava-se em local ermo, não havia outra testemunha ocular que pudesse corroborar a presença dele lá.

Sylvia se levantou calmamente e iniciou seu discurso:

— Ora bebê, porque eu faria isso? Tive tanto trabalho para tirar você e Recruta Zero Berto do meu caminho, agora você me pede comiseração? Você acha que foi fácil acessar o programa do hospital com a senha dele e excluir momentaneamente a ficha médica do menino? E procurar um homem com suas características físicas que estivesse disposto a matar por dinheiro? Sabe como foi difícil me tornar invisível, e entrar no seu apartamento para esconder o documento falso?

Tudo foi muito oneroso, de tempo, dinheiro, paciência. Não sei se é uma boa ideia jogar tudo para o alto agora. Afinal acabei de ser nomeada gestora absoluta de todo o complexo hospitalar no lugar do meu finado marido, que Deus o tenha!!

— Mas Sylvia por quê? O que eu fiz a você? Você já tinha arquitetado essa vingança quando me procurou em Boston, e me convenceu a voltar para o Brasil?

— Esse plano, meu querido, se auto definiu no dia em que você foi viver a sua gloriosa vida e me abandonou. Você realmente é ingênuo em acreditar que reencontraria aquela garota apaixonada do passado, é bom você se conscientizar de que a sua soberba prejudicou muitas pessoas, mas não há interesse em reconhecer isso, não é mesmo!


Melhor a emenda que o soneto - Rejane Martins


Melhor a emenda que o soneto
Rejane Martins

Meu filho completaria 15 anos em breve, e nesse ano em particular ele estava muito animado, afinal dia cinco de julho cairia exatamente no sábado, o melhor dia da semana! Nada o impediria de reunir todos os amigos, da antiga e da atual escola, do judô, e do prédio em que vivemos.

Havia me solicitado que reservasse o salão de festas, assim teriam um espaço, onde se divertiriam sem ter um adulto vigiando-os.

Após árdua negociação, acabou entendendo que o edifício tem regras quanto a utilização das dependências e que, os pais dos amigos estavam confiando a mim a integridade de seus filhos. Por isso a minha presença na festa era inegociável.

Mas, como bom filho moderno, não aceitou de primeira. E, claro que, ciente da limitação que toda criança sofre, magnanimamente cedeu às regras estabelecidas.

Ele condescendeu, mas  limitou minha participação exigindo que fosse esporádica, não permitiria uma vigilância cerrada.

Bem, descortinada tamanha soberba por parte do meu filho, o tom da conversa deixou de ser amigável passou a ser impositivo.

Se quiser uma festa de aniversário deverá aceitá-la nos meus moldes. Não agirei de forma irresponsável traindo a confiança dos pais que deixaram de boa vontade, seus filhos sob a meu encargo. Caso você não aceite, cancelaremos o preparativo da festa antes de começar. Decida agora.

Entramos em acordo, e ele meio a contragosto concordou com as condições. E em sua mente, os preparativos começaram a tomar forma e alçaram voo, vez por outra precisava puxar os pés dele e forçar que tocassem o solo novamente.

A partir desse momento, a festa passou a funcionar como moeda de troca, tudo que se referisse a ele era questionado e porque não dizer ameaçado com o cancelamento da festa. Confesso que abusei de minha autoridade nesse período, mas existe maneira mais eficaz de se conseguir algo que através do financeiro.

Ele resistiu bravamente à toda provação a qual foi submetido, sempre negociava com sabedoria, pois sabia que qualquer passo em falso perderia algo que lhe era muito caro, principalmente naquele ano.

Certo dia, revestido de toda arrogância que pudera concentrar, ele me confrontou quando foi advertido sobre o perigo que impôs a todos em casa quando, ao sair da casa de sua avó, esqueceu a chave na fechadura pelo lado de fora. Cabe salientar que a porta da frente da casa de sua avó não havia recuo da rua, estava à vista de todos que passavam pela calçada.

Além de não admitir o perigo em que colocou a todos, tentou argumentar com toda a sabedoria do alto de seus quatorze anos e postando-se inflexível e bastante imaturo.

Mais pelo seu posicionamento que pelo ato em si, o evento tão aguardado evento de julho foi cancelado sumariamente. E para complementar o castigo, com requinte de crueldade, ele foi obrigado a avisar a todos que não haveria mais solenidade.

Dia após dia, ele se deprimia com a anulação, mas não dava o braço a torcer. Reivindicava um sentimento de culpa por parte da mãe, que nunca vinha. Assistir a autora de tanta decepção, tão altiva e imperturbável, o consumia ainda mais.

Enfim, o grande dia chegou, a chama da esperança de que tudo seria contornado e ele teria a sua festa, ainda ardia dentro de seu peito. Mas o sábado transcorria na rotina da casa sem nenhuma variação, e a esperança pouco a pouco se esvaía.

Ao final do dia, recebemos a visita de um amigo dele que precisava ir ao shopping, mas não havia ninguém na casa dele que pudesse o levar. Meu filho compadecido da sorte do amigo, me pediu que os levassem ao compromisso. Concordei e para não sobrecarregar demais minha mãe a deixei em casa descansando.

Fomos e, rapidamente o amigo dele solucionou o afazer, indaguei se eles estariam dispostos a assistir um filme no cinema, mas eles negaram veemente. Então retornamos para casa.

Ao entrar em casa, o Fábio teve a maior surpresa, todos os seus amigos estavam lá, esperando por ele. Eles prepararam toda a festa, bolo, salgados, bebidas e tudo que uma festa de respeito pede.


Ao ser cumprimentado pelos amigos, todos exigiram que ele pedisse desculpas a mim, pois tudo que tinha feito havia sido combinado com eles para que conseguissem realmente surpreendê-lo.  

Vivendo um Sonho - Rejane Martins




Vivendo um Sonho
Rejane Martins

Desde criança Jéssica sonhava ser protagonista de novela das oito na Rede Globo de televisão. Desejava contracenar com um galã tão bonito como Tiago Lacerda que nesse momento iniciava sua promissora carreira de ator.

Nesse mundo de devaneio todas as noites seu quarto se transformava em camarim principal com direito a nome da estrela na porta. Sempre que fitava o espelho da penteadeira emoldurado com pequenas lâmpadas acesas, vislumbrava o rosto desse que lhe escreve, com um sorriso de agradecimento sincero, relembrava de como eu explicara a importância de se escolher o nome artístico com treze letras, mais do que superstição esse cuidado assegurava pelo menos noventa por cento de chances de sucesso. Adotou o nome Marina Marques.

As roupas da mãe cedidas, sem a devida permissão, transfiguravam em criações exclusivas de Givenchi, Doce Gabana, ou outro aspirante a estilista que a usaria como escada para ter seu nome despontado no mundo das celebridades.

Sua pequena cama juvenil se enriquecia com um lindo dossel,  os lençóis de linho ou de seda, determinado no átimo, alvos e perfumados acolhiam a grande diva protegendo-a de terríveis pesadelos.

Nesse mundo de cores, luzes e reconhecimentos Marina Marques foi crescendo, e junto com ela seus sonhos e a certeza de que estava predestinada ao glamour.

A adolescência chegou, as preocupações intensificaram e a consumia diuturnamente. Vivia se questionando:

Como hidratar os cabelos para ficarem tão sedosos como o das modelos de propaganda de shampoo, sem dispensar pelo menos 12 horas por semana em um bom salão de beleza?

Como convencer meus pais sobre a injustiça que era obriga-la a cumprir os compromissos estudantis (escola, os cursos de inglês e piano)?

Como se tornar a primeira e única opção em qualquer papel, sem obedecer uma rotina espartana de exercícios de pelo menos 6 horas diárias em uma academia?

Quem cuidaria de sua dieta, afinal é imprescindível vender saúde para cumprir todos compromissos estabelecidos?
E o mais preocupante, quem financiaria tudo isso?

Seu pai um funcionário público da Prefeitura do Município de São Paulo, sua mãe uma competente e esforçada dona de casa, insistiam em querer atender os anseios dos três filhos.

Será que seus pais tão limitados não vislumbravam que somente ela, a primogênita, estava predestinada ao sucesso?

Sua irmã sonhava em ser dentista e seu irmão almejava fazer parte do Corpo de Bombeiros, pobres coitados.

Quem, em sã consciência, não classificaria esses como sonhos medíocres?

O tempo foi passando, as preocupações da grande Marina Marques agregadas às cobranças dos pais e amigos por uma definição na carreira que iria acompanha-la por toda a vida.

Ora bolas!! Como alguém ainda não sabia que o curso era Artes Cênicas?

Que tipo de alienação acometeu a todos, que ainda não avistavam a grande Marina Marques que habitava em suas entranhas?

Irritava-se em casa quando escutava:

Mas filha, olha pensa bem. A sua melhor amiga optou por Direito, porque almeja a promotoria pública.

̶  E o Renatinho, filho da comadre Joana, está estudando como um louco para ingressar no curso de medicina.

̶   Eles sim têm os pés no chão, enxergam longe, terão um futuro brilhante.

Na escola o discurso não era diferente:

̶  Já saiu o manual da Fuvest, você vai se inscrever para que curso?

̶  Artes Cênicas.

̶  O quê? Artes Cênicas?

̶   Para que? É só ficar sorrindo para as câmaras do Domingão do Faustão até que alguém a perceba e te convide para atuar em uma novela.

Tamanha insensibilidade não afetou somente a Jéssica (opa, Marina Marques), mas a mim também. Quanto desprezo pelo sonho de uma vida inteira. As pessoas não percebem que se retirarem isso, arrancam todo o sentido de vida dela.

Pouco a pouco, a depressão tomou conta de nossa heroína. Durante o ritual noturno que antecede o sono, ela era incapaz de acender a moldura de lâmpadas do espelho; os lençóis não mais a protegiam de sonos ruins, até sua textura agora era áspera. Também pudera foram comprados ha quinze dias na liquidação da Zêlo. A grande estrela e o seu nome em letras douradas que adornavam a porta, não tinham mais espaço, posto que ela agora ela divide o espaço com uma atriz coadjuvante, que lembrava em muito a sua irmã mais nova.

̶  O que fazer com todos os castelos construídos até então?

̶  Como voltar a ser acalentada toda noite, pelas fortes rotinas tão cuidadosamente criadas?

Uma noite, a demora da chegada do sono ajudou Marina Marques a decidir. Não cederei à pressão, e pensou em voz alta.

̶  Eu serei uma grande atriz, meu nome abrirá portas. E um dia alguém muito importante irá dizer ao mundo “The Oscar goes to Marina Marques”.

̶  Mostrarei ao mundo do que sou capaz.

Levantou-se, postou-se a frente do computador, e iniciou a preenchimento da ficha de inscrição do vestibular. Encarou como bom presságio o fato de escrever Marina Marques no campo nome do candidato. Corrigiu para o nome de registro, Jéssica Aparecida dos Santos.

Realizou as provas e aguardou ansiosamente o resultado. Evitava conversar com as pessoas sobre o assunto evitando ouvir recriminações quanto a sua escolha.

O grande dia chegou, ansiosa entrou no site da Fuvest, deu um F5 e digitou o nome Marina Marques para que o programa localizasse seu nome. Mais uma vez riu da situação. Corrigiu e, voilà! Seu nome apareceu no meio de tantos outros.

Passaram-se 4 anos e ela olhava a todos com nariz empinado e um sorriso de vitória nos lábios. E um dia, olhando despretensiosamente o quadro de anúncios da faculdade, leu: “Teste para atores – recrutamento do elenco da próxima novela das oito”. Pensou consigo, Marina Marques o seu grande dia chegou.

No dia marcado, lá foi ela toda confiante, foi uma das primeiras a chegar para o teste. Não estava  nem pouco nervosa, tudo aquilo era só pró-forma, esse momento estava destinado a ela. Fez o teste – recitou um trecho de Anna Karenina de Tolstói. Saiu do teste, planejando o uso da ponte aérea durante o período de gravação e quanto despenderia do valor do contrato para isso.

Contou para todos que ela chegara lá. Esfregava na cara de todos que ela sempre esteve certa, e que a recompensa pela sua coragem, chamada de teimosia por muitos, era de oferecer um destino grandioso.

Passou no teste e foi para o Rio de Janeiro iniciar as gravações. Todos aguardaram notícias de Jéssica ou Marina Marques, não sabiam mais como chama-la, queriam informações sobre seu personagem, quando apareceria na tela. Mas nada, Marina Marques não dava sinal de vida, ninguém conseguia achá-la, o celular estava sempre fora de área, o Facebook parou de ser atualizado. Marina Marques sumiu da face da terra.

Bem, o grande dia chegou. Estreia a novela e todos com os olhos grudados na televisão, leram ansiosamente o nome do elenco, mas não encontraram o nome dela.

Com certeza passou despercebido.

Assistiram ao primeiro capítulo e nada de Marina Marques.

̶ Ok. Amanhã assistiremos ao segundo capítulo e aí sim leremos o nome dela no letreiro e a veremos atuar.  
  
No dia seguinte a mesma decepção, onde estaria a grande Marina Marques?

Andavam todos ansiosos e muitíssimos preocupados com o “desaparecimento” de Jessica. Telefonemas para o Rio de Janeiro foram dados muitos, mas,  nenhuma notícia da jovem. Ainda assim a família acompanhava a tal novela na esperança de vê-la em alguma tomada.   

Até que um dia, em um escritório de diretoria todo envidraçado, tendo o Cristo Redentor como paisagem ao fundo, Marina Marques aparece atrás de uma mesa de reunião imensa contornada por confortáveis cadeiras pretas de couro.

Dirige-se até a cabeceira da mesa, posiciona-se ao lado do ator principal, que representa o presidente do conglomerado, e coloca um copo com água a sua frente. A sua imagem some da câmara.

Coitada da Jéssica.

Bem que nós avisamos. Imagine! Qual a probabilidade dela se tornar uma atriz de renome. A grande diva da televisão. Que ingênua.

E quanto a novela? Acompanharemos a estória? Parece boa?

Esse presidente parece uma boa pessoa, mas eu acho que ele é o vilão e vai destruir a vida daquela atriz argentina elegantíssima que contracena com ele.

Eu proponho que nos revezemos em acompanhar, e cada vez que houver uma cena com a Jéssica postamos no face. Até o final da novela contaremos quantas aparições nossa querida e grande diva aparecerá.

̶  Combinado!

̶  Combinado!

̶  Estou dentro!

̶  Certo!

̶  Gente, estava pensando aqui comigo. Acho que a Jéssica sumiu de vergonha.

E um coro uníssono, ecoou.

̶  Ahahahaha. É mesmo.

A novela surpreendentemente mostrou uma trama interessantíssima que prendeu a atenção de todos. Próximo ao fim, todos os amigos de Jéssica se reuniam e para assistir e acrescentar mais uma unidade na contagem no quadro de aparições de Marina Marques. Já foram contabilizadas 5 aparições, sem nenhuma fala, de no máximo, 2 segundos cada.

Enfim chegou o grande dia, será o que o ator principal se revelaria o vilão? A sua parceira iria ser prejudicada pelas maldades impostas a ela? E a Jéssica? Apareceria de novo?

A reunião foi no apartamento da promotora pública. Compraram pizza, o médico Renatinho trouxe vinho argentino com Destinação de Origem (afinal a ocasião pedia). Ninguém mais se lembrava de atualizar o quadro de aparições de Jéssica. Sentaram-se todos na sala, todos solidários à elegantíssima dama principal.

Iniciou o espetáculo, sim porque a essa altura dos acontecimentos essa novela já se tornara um espetáculo. Todos mudos, estáticos, respiração sôfrega. No desenrolar do capítulo mostrou o presidente do conglomerado como um homem íntegro, e a atriz principal, a verdadeira vilã, usurpou a empresa colocando-o para fora do prédio.
Foi chocante o final da trama, principalmente quando a atriz se despindo da peruca, da dentadura e outros apetrechos permitiu descortinar pouco a pouco um rosto muito conhecido de todos. Em total silêncio constataram que a contagem estava totalmente errônea, e que a amiga de escola cumprira sua promessa.


Aquele rosto emudeceu a pequena plateia, provocando a queda dos queixos simultaneamente. Inclusive o queixo desse narrador, que caiu ao constatar que Paula Martinez continha treze letras.

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